O LAPIN se solidariza com o povo Anacé, que, nesta segunda-feira (04/08), ocupou a Superintendência de Meio Ambiente do Ceará (Semace) em protesto contra o projeto de construção de um data center da empresa Tiktok em Caucaia, na região metropolitana de Fortaleza, um território ancestral da comunidade Anacé. Essa luta é um reflexo da reivindicação histórica de um povo que, há décadas, enfrenta resistências sobre seus direitos territoriais, agora ainda mais ameaçados pela instalação de um grande data center no Complexo Industrial e Portuário de Pecém (Cipp).1
Os Anacé denunciam o não cumprimento de seu protocolo de consulta prévia, livre e informada, direito assegurado pela Convenção n° 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário2. O art. 6° da Convenção n° 169 assegura que os povos indígenas devem ser consultados em relação a medidas que possam afetar suas terras, recursos ou modos de vida. A ausência de diálogo transparente e significativo com a comunidade Anacé configura violação direta de suas prerrogativas constitucionais, e afasta qualquer hipótese de legalidade do projeto.
O projeto de instalação do data center em Caucaia não é um caso isolado, mas parte de um cenário mais amplo de grandes empreendimentos no Brasil, nos quais a proteção socioambiental e os direitos das comunidades afetadas são frequentemente negligenciados.
O Executivo Federal tem defendido que o Brasil coloque seus recursos naturais, como a matriz energética limpa, à disposição dessas infraestruturas, prometendo que, em contrapartida, o país teria acesso às tecnologias de processamento de dados dessas empresas. Tais ações estariam previstas no Plano Nacional de Data Centers (Redata), que propõe um regime de isenções fiscais para empresas interessadas em construir data centers no Brasil.
O Redata, que ainda não foi publicado nem disponibilizado para consulta pública, tem circulado principalmente por meio de notícias da imprensa e declarações3, sem transparência sobre seu conteúdo e processo. O Plano foi apresentado a empresas estrangeiras em eventos no exterior4 — empresas essas que, inclusive, consideraram as isenções fiscais insuficientes —, mas ainda não foi publicamente debatido com a sociedade brasileira. Esse processo opaco contrasta com o discurso do governo brasileiro de que o país deve proteger sua soberania, inclusive no campo digital.
Nesse contexto, os impactos ao meio ambiente e aos direitos dos povos indígenas parecem ter sido escanteados. Isso é evidenciado tanto pela ausência de participação do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima nas discussões, conforme reportado pela imprensa, quanto pelo fato de que a construção de data centers tem sido anunciada em regiões já pressionadas por escassez hídrica ou outras vulnerabilidades socioambientais e, no caso de Caucaia, em terras indígenas. 5
O caso dos Anacé, no Ceará, ilustra essa dinâmica e levanta sérias preocupações sobre a soberania digital do Brasil. A construção do data center em Caucaia potencialmente se beneficiará de incentivos fiscais previstos pela Medida Provisória nº 1.307/20256, que faz parte de um pacote de medidas para viabilizar o Redata, conforme veiculado na imprensa7. Embora o data center utilize recursos naturais estratégicos do território nacional, ele seria voltado principalmente para o fornecimento de serviços ao exterior.
Isso significa que, se construído, o país cederá recursos estratégicos como água e energia sem garantir benefícios diretos à sociedade brasileira e à revelia de povos indígenas, já que os serviços seriam prestados para atores de fora do território nacional, sem contrapartidas como o pagamento de impostos ou benefícios locais.
Além de não haver políticas públicas específicas que determinem procedimentos pautados na proteção socioambiental para a instalação de data centers, também não existe nenhuma lei nesse sentido. Pelo contrário, recentemente foi aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n° 2.159/2021, que flexibiliza as regras para o licenciamento ambiental no país – conhecido como “PL da Devastação”8. Paralelamente, embora tramitem no Congresso projetos voltados à regulação de data centers, como os PLs 3018/20249 e 2080/202510, eles ainda não foram objeto de amplo e inclusivo debate, especialmente em relação a impactos a populações afetadas, incluindo comunidades tradicionais e outros grupos vulnerabilizados.
Diante disso, o LAPIN manifesta apoio integral ao povo Anacé em sua luta para que seu Protocolo de Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado seja devidamente seguido em relação ao projeto de instalação do data center em Caucaia, por compreender que:
- A ausência de consulta prévia, livre e informada constitui violação direta à Convenção n° 169 da OIT, comprometendo a legalidade de qualquer ato administrativo ou legislativo que autorize a instalação do empreendimento;
- A implementação de projetos sem transparência e participação social efetiva eleva os riscos socioambientais e de conflito territorial, inviabilizando o cumprimento de obrigações constitucionais e internacionais de proteção aos povos indígenas e ao meio ambiente;
- O modelo de incentivo à instalação de grandes data centers para serviços de empresas estrangeiras, sem instrumentos claros de regulação e contrapartidas ambientais e sociais, gera impactos desproporcionais em recursos hídricos, consumo energético e ocupação territorial, além de fragilizar a soberania sobre o uso estratégico do território nacional.
O LAPIN reforça a urgência de se estabelecer um modelo de desenvolvimento que respeite os direitos territoriais dos povos indígenas e garanta a proteção ambiental nas decisões sobre a instalação de grandes empreendimentos de data centers. A soberania digital e o desenvolvimento sustentável só serão alcançados com a inclusão das comunidades afetadas no processo decisório e a criação de políticas públicas que, de fato, assegurem a justiça socioambiental e os direitos das populações locais.
- https://www.intercept.com.br/2025/08/04/indigenas-anace-protestam-data-center-tiktok-ceara/ ︎
- https://www.oas.org/dil/port/1989%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20Povos%20Ind%C3%ADgenas%20e%20Tribais%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20OIT%20n%20%C2%BA%20169.pdf ︎
- https://g1.globo.com/economia/noticia/2025/05/24/governo-tera-politica-nacional-para-data-centers-entenda-o-que-sao-e-por-que-sao-considerados-importantes.ghtml ︎
- https://teletime.com.br/05/05/2025/haddad-apresenta-a-big-techs-o-plano-nacional-de-data-center-brasileiro/ ︎
- Como em Eldorado do Sul, que foi extremamente afetado pelas enchentes que devastaram o Rio Grande do Sul em 2024. https://www.intercept.com.br/2025/06/23/eldorado-do-sul-abre-portas-para-projeto-bilionario-de-data-center/ ︎
- Medida Provisória nº 1.307/2025 que trata das Zonas de Processamento de Exportação (ZPEs) no Brasil. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2025/Mpv/mpv1307.htm ︎
- https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/lula-assina-mp-para-impulsionar-instalacao-de-data-center-no-ceara/ ︎
- https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=257161&fichaAmigavel=nao ︎
- Que dispõe sobre a regulamentação dos data centers de inteligência artificial. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/164831 ︎
- Que Institui a Política Nacional de Eficiência Energética e Sustentabilidade Socioambiental para Data Centers. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2503790. ︎
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