Riscos e resistências para mulheres na internet – Possibilidades práticas do ciberfeminismo na era digital

A internet vem se tornando, cada vez mais, uma plataforma para a construção de novos feminismos, para a organização de mobilizações políticas em prol de pautas que afetam mulheres e para a formação de feministas em todo o país. Por outro lado, é também através da internet que outras formas de violência (digital) contra a mulher são criadas e incentivadas.  Sendo assim, esse post busca mostrar alguns aspectos dessa dupla face da  internet para mulheres – riscos e resistências – e abordar como os ciberfeminismos vêm tendo importante papel de disputar esse terreno político que é o ciberespaço.
Internet como perigo e potência para mulheres
Divulgação não consentida de imagens íntimas, ameaças virtuais, assédio em carros de aplicativo de transporte, assédio online, sextorção, cyberbullying, páginas machistas nas redes sociais, perseguições organizadas em fóruns contra mulheres (“chans”), o fortalecimento de governos fascistas e misóginos. Estas são apenas algumas das formas pelas quais a internet ajuda a criar e reinventar maneiras de violências contra mulheres. As consequências destas violências misóginas na vida dessas mulheres são gravíssimas e, como aponta a promotora Valéria Fernandes, muitos são os casos de depressão e até mesmo de suicídio.
Por outro lado, a internet também permitiu que uma série de práticas feministas se construíssem e fortalecessem, criando e reinventando, também, novas formas de ser mulher e de construir resistências políticas contra violências de gênero dentro e fora do ciberespaço. Para pensarmos nas potências que a internet tem para construirmos feminismos nos dias atuais, é preciso também mapear os riscos que corremos e identificar onde estão os perigos que a internet nos traz enquanto mulheres, para traçarmos nossas rotas e estratégias.
E é aí que entram os ciberfeminismos: nesta constante disputa de terrenos, entre perigos e potenciais que a internet traz especialmente para minorias políticas. Os ciberfeminismos são movimentos e práticas múltiplas que tentam articular conjuntamente as agendas de grupos feministas (em sua grande pluralidade) com as agendas ciberativistas contra a vigilância na internet, a favor de políticas de defesa de uma internet aberta, segura e democrática.
As bases teóricas do ciberfeminismo tem origem nas teorias da pensadora estadunidense Donna Haraway a respeito de como nossos corpos são, na prática, mistos de tecnologia e organismo. Isso vai desde os óculos e aparelhos dentais que utilizamos, passando pelos medicamentos e suplementos que tomamos rotineiramente, até a crescente integração (física e cognitiva) que temos com nossos smartphones. Diferente do robô, que é inteiramente construído, um ciborgue é um híbrido de natureza e construção. Para Haraway, somos todos ciborgues, condicionados pela natureza e pela história, mas constantemente atualizados e reinventados por meio de intervenções tecnológicas.
Nesse sentido, a autora afirmava, já em 1985, que é essencial que as mulheres se apoderem das tecnologias de forma a utilizá-las para a transformação da realidade social de mulheres. Ao pensarmos a internet, essa apropriação se torna ainda mais urgente, uma vez que esta se desenvolveu  em um contexto de dominação e espionagem militares; é dominada por homens em áreas técnicas (desenho, planejamento, realização e distribuição); é ainda marcada pela baixa presença e pelo silenciamento de mulheres; e é ainda plataforma para exposição e violação de mulheres e seus  dados.
Foi explorando a potência da tecnologia para mudar esse cenário que surgiram os ciberfeminismos, ainda na década de 90, com um grupo de artista chamado VNS MATRIX e pensadoras feministas como Sandy Stone e Sadie Plant.
Mas, na prática, como o ciberfeminismo age no Brasil?
No Brasil, os ciberfeminismos tem chegado em peso a partir da última década e tiveram seu início a partir da criação de blogs feministas. Com os anos houve uma expansão dessas páginas – algumas em formato de websites e outras como páginas de Facebook – de conteúdos feministas. Alguns exemplos são o Blogueiras Feministas, Blogueiras Negras, Think Olga, Transfeminismo, Biscate Social Club, Não me Kahlo, AzMina e Feminismo Sem Demagogia, dentre muitas outras.
Esta é, portanto, uma das primeiras e mais conhecidas possibilidades exploradas pelo ciberfeminismo, a utilização do alcance possibilitado pela internet – não apenas em quantidade, mas em pluralidade de públicos – para a disseminação de ideias feministas. É importante notar como todas estas páginas demonstram também a diversidades das teorias e práticas feministas no país.
Além da expansão destas páginas, multiplicaram-se também as apropriações dos ciberfeminismos no país. Isto, não apenas utilizando a internet para disseminar textos e temáticas feministas, mas também enquanto ferramenta política de características únicas para a mobilização de causas feministas e promoção da equidade de gênero na rede. Apesar da crítica comum de que, tal como outros ciberativismos, o ciberfeminismo seria um movimento que não constrói ações práticas e efetivas, são muitas as ações e possibilidades geradas a partir desse movimento, sendo algumas  delas:
– Hashtags e campanhas virtuais em torno de questões que dizem respeito às nossas vivências e pautas enquanto mulheres e às violências a que somos submetidas, tais como: a hashtag #agoraequesaoelas – criada em 2015 para exigir que mulheres tenham mais espaço dentro das produções midiáticas e jornalísticas; a campanha #mulheresnagovernança – lançada em 2017 reivindicando mais espaço para mulheres nas discussões e produções sobre internet e Governança da Internet; Hashtags como #naoaviolenciadegenero e #naomerecoserestuprada, utilizadas para mostrar dados de desigualdade social entre homens e mulheres, de forma a reivindicar direitos e segurança. Há ainda hashtags utilizadas para denúncia de violências machistas e/ou racistas sofridas por mulheres e LGBTs, como: #foiassedionasaudeufmg; #euempregadadomestica; #naomerecoserestuprada; #meubolsominionsecreto; #sentinapele; #meuprimeiroassédio; #meuamigosecreto; e #chegadefiufiu.
– Grupos exclusivos de mulheres para compartilhamento de experiências e apoio como (para citar apenas dois tipos de dezenas): grupos no Facebook de compra, venda e permuta de serviços e produtos feitos por mulheres, a exemplo do “Justas Geramos Renda”; grupos de compartilhamento de vivências de maternidade lésbica e possibilitadores de inseminação caseira gratuita para casais de mulheres não-heterossexuais, a exemplo do “Inseminação caseira – tentantes e doadores”;
– Campanhas e mobilizações contra figuras e movimentos políticos que atentam contra nossos corpos, vidas e seguranças, como o grupo “Mulheres contra Bolsonaro” criado em outubro de 2018 e que chegou a ter 3 milhões de participantes, além de amplo uso da hashtag #EleNão. Tudo isso ampliou não apenas o alcance da discussão feminista durante as eleições, como foi fundamental para a organização de atos e eventos com milhares de mulheres participantes.
– Desenvolvimento de programas e robôs como, por exemplo, a BETA que é uma robô feminista online programada para ajudar a viralizar pautas e votações políticas de questões que nos dizem respeito. Além disso, visa incentivar o engajamento político de mulheres, facilitando o envio de mensagens para parlamentares e a participação em pesquisas públicas.
– Desenvolvimento de mecanismos virtuais de denúncia e mapeamento de assédios, para além das hashtags utilizadas em redes sociais com este intuito. Dentre estas plataformas, temos a “Vedetas #ataques”; o site “Brasil Leaks”; os aplicativo “Assédio Zero” e “Todxs”; o site/mapa “Chega de Fiufiu”; e o site “Safernet Brasil”. O interessante a respeito destas possibilidades de denúncia é que elas não se fazem a partir de perfis pessoais e, inclusive, algumas delas tem como preocupação a encriptação das mensagens e a garantia de real anonimatodas denunciantes. Estes são aspectos essenciais, uma vez que apesar da grande relevância que as hashtags de denúncia tiveram, muitos foram os casos de retaliações sofridas por estas mulheres, uma vez que seus dados estavam disponíveis junto a seus relatos. Neste sentido, plataformas como as iniciativas hotline e a helpline da Safernet partem da noção de que anonimato e criptografia são figuras muito importantes na garantia de direitos humanos e de minorias políticas.
– Estabelecimento de uma série de eventos de programação para mulheres como, por exemplo, o “Hackathon Gênero e Cidadania” (maratona de programação digital de 2014 para desenvolvimento, por mulheres, de protótipos de ferramentas digitais sobre violência de gênero e políticas  para mulheres.
É o caso, ainda, das diversas coletivas ciberfeministas que surgiram no país e que vêm multiplicando ações e discussões a respeito da construção de uma internet feminista, mais segura para mulheres e da apropriação tanto da internet quanto do ciberativismo para dentro da luta feminista. Alguns exemplos dessas coletivas são: o MariaLab; o InternetLab; o Intervozes especialmente com sua campanha #conecteseusdireitos, a Coding Rigths com diversas ações, em especial a campanha #Safermanas; a plataforma Clandestina (ou CL4NDESTINA); e ainda os sites Autonomia Feminista Tecnologia; Ciberseguras; e Oficina Antivigilante.
A internet também foi (e continua sendo) feita por mulheres
Estas são apenas algumas das expressões pelas quais as mulheres e os feminismos vem se apoderando da internet e instrumentalizando-a de forma potente. Outra ação fundamental é a inserção arduamente conquistada e crescente de mulheres programadoras e que escrevam sobre algoritmos, tal como a visibilização de outras que foram fundamentais na história da tecnologia, da informática, da programação e da internet, mas que raramente têm seus trabalhos conhecidos.
É o caso, por exemplo: de Ada Lovelace, a primeira pessoa a programar um algoritmo a ser lido por uma máquina; de Hedy Lamarr, que inventou o “salto de frequência”, a ferramenta básica para criação do Wi-fi, GPS e Bluetooth; de Katherine Johnson, responsável na NASA pelos cálculos das trajetórias do primeiro americano para o Espaço e para a missão da Apolo 11 para a lua; de Jean Sammet que criou uma das primeiras linguagens computadorizadas, o FORMAC; e de tantas outras.
É importante notar que o déficit de mulheres na área repercute não apenas no acesso ou na representação “feminina”, por si só já problemático, mas é também uma questão de produção, valorização e circulação do conhecimento produzido por mulheres. No entanto, uma série de iniciativas vem tentando romper estas barreiras de gênero impostas dentro destas áreas, tanto na construção teórica da internet, quanto no campo técnico, como é o exemplo da campanha #MulheresnaGovernança.
Conclusão
Esta contradição entre risco e resistência que a internet oferece para mulheres é mais uma das tensões ambíguas que envolvem as vivências ciborgues e feministas. Nós mulheres somos fruto da internet, de seus sistemas de controle, do sistema patriarcal e fruto de suas violências, mas também somos o potencial para sua desestruturação. Somos um bug no sistema que tenta nos violentar e viemos causar estragos. É preciso se apoderar dos ciberfeminismos, é preciso hackear o patriarcado.
Gostou dessa discussão? Quer saber mais sobre a inclusão e participação de mulheres na internet? Leia nosso texto Equidade de gênero e internet: vamos juntas! das pesquisadoras Lahis Kurtz, Luíza Brandão e Paloma Rocillo.
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem à autora.