Manifestamos nossa preocupação ao formato e ao conteúdo da proposta de Política Nacional de Data Centers (ReData) na forma em que foi apresentada. Reconhecemos a relevância de fortalecer a infraestrutura digital do país e de promover cadeias produtivas tecnológicas próprias. No entanto, o processo de formulação dessa medida provisória foi marcado pela falta de transparência. Houve exclusão da sociedade civil dos processos decisórios e foram realizadas reuniões prévias com grandes empresas antes de qualquer debate público ou diálogo com comunidades afetadas. Além disso, não houve uma abordagem séria e consistente das implicações socioambientais e climáticas, que deveriam estar no centro de qualquer proposta desse tipo.
O texto revela uma incongruência grave do governo federal. Nos últimos meses, o Executivo tem levantado a bandeira da soberania nacional como princípio estratégico. Mas, ao mesmo tempo, se dispõe a entregar nossos recursos naturais às grandes corporações do setor de data centers e big techs. São empresas que, no Brasil, já se mostraram vetores de práticas antidemocráticas e que concentram poder econômico e político em escala global. Esses incentivos vêm sendo utilizados como moeda de troca em negociações econômicas. Enquanto isso, ignora-se a construção de uma política pública estratégica voltada ao interesse coletivo e à proteção da natureza. Essa contradição expõe a fragilidade de um modelo de digitalização que privilegia interesses privados em detrimento da democracia, da justiça socioambiental e da autonomia do país.
A proposta carece de salvaguardas socioambientais e climáticas explícitas para prevenir impactos já constatados em experiências internacionais e nacionais. Entre eles, estão: agravamento do estresse hídrico, aumento de custos energéticos locais, poluição, conflitos territoriais e exclusão de comunidades locais, indígenas e tradicionais dos processos decisórios. Menções às obrigações ambientais são vagas e sem definições claras de termos como “energia limpa” ou “eficiência hídrica”. Embora se fale em contrapartidas como energia renovável e padrões de eficiência, esses critérios ainda serão definidos em regulamentação futura. Mesmo com a previsão de perda de benefícios e sanções em caso de descumprimento, a falta de parâmetros objetivos dá ampla margem de discricionariedade.
Soma-se a isso a falta de regras sobre extrativismo mineral, destinação de resíduos eletrônicos e responsabilidade no ciclo de vida de equipamentos como GPUs, baterias e servidores. Data centers exigem extração intensiva de minérios estratégicos e geram volumes significativos de resíduos especializados e materiais críticos. Esses materiais exigem logística reversa, reciclagem e redução de toxinas. Sem regras, o país será mais um repositório de sucata eletrônica.
Ao priorizar incentivos fiscais, regimes especiais e isenção de tributos e tarifas de importação, a medida trata a questão como mero problema tributário e de competitividade econômica. Reduz a sustentabilidade a uma diretriz opcional, sem mecanismos vinculantes que assegurem proteção ambiental ou justiça social.
A ausência de exigência de estudos de impacto ambiental, hídrico e energético cumulativo antes da concessão de licenciamento ou benefícios fiscais é inaceitável. A experiência recente com grandes empreendimentos em Eldorado do Sul (RS) e em Caucaia (CE) já demonstra o custo dessa omissão. Houve ausência de planejamento integrado, inexistência de consulta às comunidades locais e agravamento de desastres ambientais.
O texto do ReData não faz nenhuma menção direta ou indireta a medidas envolvendo comunidades locais. Não há consulta ou mecanismos de diálogo, participação ativa e reparação de comunidades afetadas pelas construções e instalações dessas infraestruturas. A proposta também ignora a obrigatoriedade de consulta prévia, livre e informada a povos indígenas e comunidades tradicionais, conforme previsto em tratados internacionais ratificados pelo Brasil.
Por fim, ao não vedar explicitamente a instalação de projetos em áreas de risco hídrico, zonas de desastre ou territórios sujeitos a eventos climáticos extremos, o governo reforça a possibilidade de repetição de modelos insustentáveis. Esses modelos já foram criticados em outros países, como Chile e Irlanda, que enfrentam hoje crises agudas de água e energia relacionadas à instalação de data centers.
Defendemos que investimentos públicos e incentivos fiscais para infraestrutura digital só podem ser legítimos se condicionados a salvaguardas socioambientais robustas, mecanismos efetivos de participação democrática e total transparência. Sem essas garantias, o Estado corre o risco de financiar, com recursos públicos, um modelo de digitalização que amplia desigualdades territoriais, intensifica crises socioambientais e compromete a própria soberania que afirma defender. Tudo isso em benefício de interesses privados estrangeiros e de uma lógica extrativista de infraestrutura digital.
IDEC – Instituto de Defesa de Consumidores
Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife – IP.rec
Laboratório de Políticas Públicas e Internet – LAPIN
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