Dados à vista! O descobrimento da privacidade

De espelhos a dados: O escambo digital do século XXI
Provavelmente, todo brasileiro que estudou os primeiros anos da história do Brasil conhece o significado do termo “escambo”. Hoje, achamos inadmissível o fato de colonizadores terem negociado com nativos objetos de pequeno valor em troca de uma das mercadorias mais valiosas e cobiçadas na Europa naquela época.
No entanto, alguns séculos se passaram, e, com o desenvolvimento de uma economia baseada em dados, passamos a fornecer importantes informações a nosso respeito em troca de serviços, Wi-Fi públicas ou descontos em medicamentos. Nos últimos anos, nossos dados, mais valiosos que qualquer carregamento de especiarias no século XVI, foram facilmente coletados e processados por diversas empresas e muitas vezes transferidos a terceiros inadvertidamente, isto é, não conhecíamos nem o rosto do nosso negociante.
Assim, apesar de também relacionados à navegação, dessa vez da Internet, os coletores das nossas riquezas não foram os grandes navegadores do século XVI, mas empresas que se utilizam de tecnologias movidas a dados. Na era do capitalismo de vigilância, casos como a possibilidade de discriminação por dados de reconhecimento facial são publicizados pela mídia brasileira e investigados pelo Ministério Público, assim como a coleta e transferência não autorizada a terceiros de dados pessoais por redes de farmácia.
Felizmente, a entrada em vigor do Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (GDPR) em maio de 2018 causou uma série de repercussões em relação ao direito à privacidade e à proteção de dados em todo mundo. No Brasil, seus efeitos são constatados por meio da recente aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados Brasileira (LGPD). Apesar dos preocupantes vetos presidenciais em relação a aspectos como, por exemplo, a existência de uma Autoridade Reguladora de Proteção de Dados, a lei representa uma significativa vitória da privacidade no Brasil. Entretanto, a LGPD não deve ser a única forma de proteger a privacidade e os dados dos cidadãos brasileiros nos dias atuais.
 
Compartilhar ou não compartilhar? Eis a questão
De acordo com estudos realizados por membros do Oxford Internet Institute, as ameaças à privacidade são constatadas não apenas porque jovens compartilham conteúdos on-line com pouca compreensão dos riscos. Pelo contrário, dados mostram que jovens tendem a ser mais dedicados à proteção da sua privacidade on-line do que usuários mais maduros. Porém, o dilema em relação à preservação da privacidade nasce com a concepção de uma vida social que agora é conduzida de maneira conectada onde redes sociais e serviços on-line não forneciam – pelo menos até o advento da GDPR – aos usuários ferramentas que lhes permitissem gerenciar adequadamente sua privacidade.
Assim, plataformas digitais se tornam tão incorporadas na vida social dos usuários que estes buscam divulgar informações pessoais ainda que esses sites não ofereçam controles de privacidade adequados. No Brasil o cenário não é muito diferente do Reino Unido. Quando questionados a respeito de preocupações e anseios acerca da privacidade on-line, muitos afirmam se preocupar com a proteção a respeito da sua privacidade. Entretanto, ações que comprovem essa posição ainda são tímidas por parte dos usuários brasileiros. A excessiva publicização da vida privada em redes sociais e a falta de importância dada à leitura de termos de uso e políticas de privacidade são só alguns dos exemplos de comportamentos que podem representar o “paradoxo da privacidade” ou o “dilema da privacidade” em que vivemos.
 
Reaprender a navegar é preciso
Muitas vezes, este comportamento incoerente acontece devido a falta de um maior conhecimento, não só dos riscos, mas dos meios e alternativas que garantem uma maior segurança ao usuário. A partir daí, percebe-se a necessidade do que alguns chamam de “alfabetização da privacidade” ou privacy literacy. À primeira vista nos parece que o processo de alfabetização da privacidade está relacionado à “alfabetização digital”. Entretanto, assim como afirma Christina L. Wissenger, da Universidade da Pensilvânia, os dois significam coisas distintas. Enquanto a alfabetização digital busca desenvolver a habilidade do usuário de criar e transmitir informações no ambiente on-line, o estudo da privacidade está associado ao entendimento das consequências e responsabilidades associadas ao compartilhamento de informações. A privacy literacy busca desenvolver o pensamento crítico do usuário, para que este seja capaz de construir um melhor juízo de valor ao decidir por compartilhar informações na rede. É necessário que o usuário compreenda que a sensação de anonimato proporcionada pela Internet muitas vezes não é real. A web, redes sociais e a Internet das coisas, por exemplo, apesar de proporcionarem uma certa sensação de segurança e distanciamento do mundo real, podem funcionar como mecanismos bastante eficazes de rastreamento do usuário e invasão de sua privacidade.
 
Leis gerais de proteção de dados x paradoxo da privacidade
Sem dúvidas, a introdução de uma lei geral de proteção de dados beneficia tanto empresas como usuários. Além da maior proteção oferecida à privacidade dos seus clientes, ao se adequar às regras da nova lei, empresas não só passam a estar em compliance com leis modelo a nível internacional como também se beneficiam, por meio de princípios como o privacy by design e outros que delimitam o propósito dos dados coletados (purpose limitation) e a sua necessidade (data minimisation), por exemplo. Tais princípios contribuem para uma diminuição dos riscos de vazamento de dados e para um maior nível de proteção e segurança dos dados armazenados em seu poder, atraindo assim clientes que buscam uma maior proteção das suas informações.
Apesar da sua extrema relevância, ainda não se sabe, de forma concreta, o quanto leis gerais de proteção de dados incentivam usuários a buscar informações a respeito de medidas que assegurem a sua privacidade. Um estudo, realizado por Shailesh Balla da Universidade de Roterdã, tentou investigar a influência do GDPR em relação ao comportamento de consumidores holandeses. O estudo buscou comparar a importância dada à privacidade por aqueles que se instruíam a respeito das leis em vigor, aqueles que estudavam o novo Regulamento e aqueles que permaneciam desconhecendo qualquer conteúdo legal relacionado ao tema. Entretanto, o estudo não foi conclusivo a respeito de mudanças significativas de comportamento em razão da nova lei. Acredita-se que como o estudo foi realizado em dezembro de 2017, ainda no período de vacatio legis da GDPR, mostrou-se inconclusivo por esse motivo.
 
Ferramentas aliadas na busca pela preservação da privacidade
Além da conscientização das empresas e do governo a respeito do uso de um consentimento de maneira clara e transparente da coleta e do uso de dados, com políticas de privacidade e termos de uso mais amigáveis ao entendimento do usuário, é necessário que a população se informe cada vez mais e conheça as ferramentas e meios disponíveis que visam aumentar a proteção da sua privacidade on-line. A ideia tradicional de que a privacidade está apenas ligada a um espaço físico tem de ser revista. A violação da privacidade hoje não acontece apenas quando alguém olha pela janela da sua casa ou por cima do seu ombro para a tela do seu computador ou celular, o ciberespaço funciona de uma forma bastante diferente desse entendimento. A Internet nos trouxe uma série de mudanças de conceitos, entre eles a ideia de que a conexão com a Internet representa a entrada em um espaço público. Para que façamos um uso seguro da Internet, minimizando os riscos de um uso abusivo dos nossos dados por empresas, governos e cibercriminosos, é necessário que tenhamos a consciência disso.
 
Recomendações:
Terms and Conditions May Apply – Cullen Hoback
https://www.youtube.com/watch?v=LIiLoT4Po-c
Panopticon – Peter Vlemmix
https://www.youtube.com/watch?v=FUyB0Tsj6jE&t
Power of Privacy – The Guardian
https://www.youtube.com/watch?v=KGX-c5BJNFk&t
Privacidade na era da Internet – Quebrando o Tabu
https://www.youtube.com/watch?v=6e89YcaFYTI
Mapa da Informação
http://mapadainformacao.com.br/
Especial Apps do Governo – Internet Lab
http://www.internetlab.org.br/pt/projetos/especial-apps-do-governo/
The House That Spied on Me – Kashmir Hill e Surya Mattu
https://gizmodo.com/the-house-that-spied-on-me-1822429852
As opiniões e perspectivas retratadas neste artigo pertencem a seus autores e não necessariamente refletem as políticas e posicionamentos oficiais do Instituto de Referência em Internet e Sociedade.
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