As nuances do debate sobre neutralidade de rede

O conceito de neutralidade de rede já foi debatido neste blog, mas envolve certas nuances que normalmente são negligenciadas em debates mais midiáticos. É importante refletir sobre esse tema, porque as respostas e conceitos envolvidos não são meramente dicotômicas, como se esperaria em um debate simplório de “sim x não” quanto à implementação da neutralidade de rede nos mais diferentes ordenamentos jurídicos do globo. Então, quais seriam essas variantes?

Primeiramente: existe a necessidade de regular neutralidade de rede?

A isonomia no tratamento de pacotes de dados online é uma ideia que começou a ser vislumbrada na década de 1990, com a popularização do acesso à rede, mas também com o início de conflitos e preocupações nesse campo de pesquisa. Segundo Lawrence Lessig, a arquitetura da rede seria um dos elementos essenciais para a conformação do Direito referente à internet, já que quem escreve os códigos e desenha a infraestrutura da rede está também moldando a realidade. A partir dessa constatação, autores como Tim Wu refinaram esse pensamento e formularam teorias segundo as quais os provedores de conexão seriam verdadeiros gatekeepers (guardiões) do tráfego de dados. Ou seja, teriam a capacidade de controlar tudo que chega aos usuários finais, visto que ele passaria por esse “funil”.
Isso gera preocupações, já que qualquer forma de controle e discriminação de conteúdo tem também a potencialidade de alterar percepções, tolir a liberdade de expressão, gerar bolhas econômicas e competitivas, desestimular a inovação, entre outros aspectos. No entanto, esse mesmo provedor também exerce funções essenciais de segurança nesse controle, por exemplo filtrando conteúdos indesejados pelos usuários.
Como a internet tem uma capacidade regenerativa, podendo ser utilizada com diferentes propósitos, a depender das vontades e habilidades dos usuários, é importante que essa liberdade e essa segurança sejam mantidas. Para Pedro Ramos, se queremos que a internet seja também utilizada como um instrumento de mudança e desenvolvimento social, essa escolha sobre qual é a regulação ideal deve necessariamente fazer parte dos debates sobre governança das redes, especialmente em relação à autonomia do usuário para fazer com a internet o que ele considera adequado. Mas como fazer isso em um ambiente de neutralidade de rede? Ela seria absoluta? Relativa? A regulação, seja ela ex ante ou ex post, vai determinar esses parâmetros sob uma perspectiva mais operacional.

Fugindo das dicotomias: regular não é necessariamente bom ou ruim

É possível regular a arquitetura da internet, no que diz respeito à neutralidade de rede, sem necessariamente cair na falácia de um argumento simplesmente “pró” ou “contra” sua implementação. Existem diversas formas de discriminação: bloqueio que provedores de aplicação; alteração na velocidade de navegação, seja ela positiva ou negativamente; e discriminação por meio de preço, também negativa ou positivamente.
Certamente, o jogo de custos e benefícios de um ambiente sem neutralidade de rede, ou de uma neutralidade com exceções, pode variar entre provedores de trânsito, de conexão, de aplicação e entre usuários. Até mesmo o governo é um setor interessado na conformação desses custos e benefícios, já que é de seu interesse a manutenção de incentivos à inovação, por exemplo. O bloqueio de serviços de VoIP (Voice over Internet Protocol), por exemplo, pode ser benéfico para provedores de conexão que são também empresas de telecomunicação, mas ruim para provedores de aplicação, usuários e um ambiente de inovação na camada mais superficial da internet.
É interessante notar, também, que os serviços de telecomunicações costumam possuir margens de lucro maiores do que os serviços de aplicação de internet. Isso explica, em parte, os esforços das empresas de telecomunicação em tentar manter seus usuários por meio de exceções à neutralidade de rede. Por outro lado, faz sentido priorizar o tráfego de dados de aplicações que têm menos tolerância à latência, como serviços de streaming, on demand, VoiP e DNS. Bitorrents, backups e downloads de software têm maior tolerância a essa latência, por isso poderiam ser postergados.
Quando o debate é colocado dessa forma, entre serviços que toleram latência e serviços que não toleram latência, o interlocutor é forçado a fazer uma escolha entre “sim” ou “não”. Mas será mesmo necessário? Será que essa priorização precisa ser ativa? Ou seja, existe uma lógica razoável que justifique essa proposta de discriminação de banda na internet, especialmente nas conexões fixas? Há poucos dados que substanciam essa dicotomia fundada em critérios de infraestrutura, apesar de as empresas de telecomunicação frequentemente utilizarem essa lógica argumentativa.

Neutralidade de rede com exceções, mas quais?

Criar um regime de exceções, como foi a resposta brasileira por meio do Decreto nº 8.771, de 2016, pode ser um meio termo muito mais razoável e pragmático para o tratamento da neutralidade de rede. Após sucessivas consultas públicas e um conturbado momento político em 2016, escolheram-se as seguintes exceções quando da promulgação do Decreto, em seu artigo 4º: por requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada de serviços e aplicações; ou pela priorização de serviços de emergência.
O Decreto ainda faz menção expressa à forma de condução dessas exceções à neutralidade de rede, sendo necessário o cumprimento de todos os requisitos dispostos no art. 9º, § 2º, do Marco Civil da Internet, quais sejam: abster-se de causar dano aos usuários; agir com proporcionalidade, transparência e isonomia; informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.
Ou seja, a prática de discriminação do tráfego de dados no Brasil foi regulada, levando em consideração um meio-termo entre os critérios de segurança jurídica e de liberdade para a aplicação de gerenciamento de tráfego. Países como Chile, México, Japão, Colômbia, Holanda e Estados Unidos buscaram regular também ex ante a neutralidade de rede em suas legislações internas, levando em consideração seus objetivos econômicos, valores sociais e prioridades culturais.

Falsa polarização

A conclusão a que se chega por meio deste debate é a de que os interesses são extremamente diversificados quando o tema é neutralidade de rede. Os atores interessados não se dividem, necessariamente, entre “a favor” e “contra” a não discriminação de dados, até porque suas atuações sociais e de mercado também variam e são complexas, gerando uma interdependência contextual não polarizada dessa forma simplista.

* Este texto foi elaborado a partir dos estudos do autor e de palestras da Escola Jurídica de Governança da Internet, promovida pelo Comitê Gestor da Internet e pelo ITS – Rio, em Brasília, em 2017. Em especial, observa-se a relevância do trabalho de Pedro Ramos para o aprofundamento do tema da neutralidade de rede.